Discurso do Desembargador Renato Simões durante o XXXIX CONAT
17 de outubro de 2017
Minhas senhoras e meus senhores,

Quero primeiramente agradecer ao honroso convite que me foi formulado pelo dr. Jorge Lima, nosso grande presidente da ABAT, para me integrar a essa Conferência Nacional de Advogados, ladeado por pessoas tão lúcidas e competentes, como o ex-presidente da ABRAT e da ALAL, Dr. Luis Carlos Moro e da  Professora-Doutora da Universidade Federal de Minas Gerais, Daniela Muradas.

Confesso que tive alguma apreensão de vir até aqui dizer algumas palavras, porque não sou conferencista, nem professor, nem acadêmico. Sou apenas um humilde julgador, onde ainda ferve nas veias o sangue do advogado. A minha contribuição, acredito, deva ser focada muito mais como aplicador da lei, na subsunção dos fatos a ela, e ela, por sua vez, subsumida aos mandamentos constitucionais que norteiam o ordenamento jurídico do país.

Dito assim a equação pareceria simples de ser resolvida, porque estaríamos tratando apenas de graduar que valores coletivos constitucionais seriam capazes de ser flexibilizados, a ponto de se dispor, de forma contrária e contratual, ao que diz a legislação infra-constitucional.

Esse seria o nó de toda a questão. Esse será o nó de toda a questão.

Nada no mundo é solto a ponto de não necessitar um regramento , uma concatenação de valores, uma intermediação de culturas, uma apreciação ampla da sua razão de ser. Principalmente quando atinge um patamar constitucional. Para chegarmos à concepção teórica do que é cada coisa, longo caminho foi traçado, discutido, maturado. Nada se fez de forma aligeirada e simples, submetida apenas a uma vontade ou a um interesse, ainda que emitidos de forma coletiva. O que foi maturado anteriormente, obedeceu a um comando coletivo, discutido amplamente e também emitido coletivamente.

Daí emana a primeira dificuldade. A que diz respeito à legitimidade das coisas. São legítimas as emanações legislativas infraconstitucionais, proferidas em desacordo com aquilo que foi traçado como regramento pétreo constitucional? E com aquilo que não era pétreo, a possibilidade se abre? 

Cada preceito constitucional carrega o peso da concatenação e da conformidade a todo o sistema de valores nele estabelecidos. Quando a República Federativa do Brasil se constituiu em Estado Democrático de Direito e erigiu a dignidade da pessoa humana,  os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa,  como fundamento da própria República, estabeleceu que os mesmos, aliados à soberania, à cidadania e ao pluralismo político, são os valores maiores, impossíveis de serem violados, porquanto fundamentais à sua existência. Sem eles, ou com atitudes contrárias a eles, a República não existe. Desfaz-se na origem.

Dentre os objetivos fundamentais à existência da República está a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Portanto, liberdade, justiça e solidariedade são conceitos constitucionais a serem sempre obedecidos e ponderados na hermenêutica jurídica.

 As alterações legislativas tidas como reformatórias da lei trabalhista, inseridas a toque de caixa e sem maiores preocupações hermenêuticas, terminaram por colocar em confronto, no mesmo corpo, órgãos antagônicos, que ao invés de se harmonizarem, se repelem, não resistindo, por vezes, à mais frágil das formas interpretativas que diz respeito à literalidade do texto legal. A mens legis traça encarniçado embate com a mens legislatoris, deixando o intérprete perplexo em inúmeras situações, já apontadas inconstitucionais por uma legião de comentaristas, independentemente do matiz ideológico que se lhes queira emprestar.

Não estamos falando de política, mas de estrita matéria jurídica, posta ao raciocínio do julgador, que não é apenas "a boca da lei", o escravo literal do texto, mas o seu intérprete, aquele que lhe dará vida, aquele que está obrigado a inúmeros exercícios de conformação principiológica, de compatibilização dos diversos ramos do direito tidos como subsidiários, de distanciamento e adaptação de preceitos, de obediência e repulsão na estrutura do trabalho, de elementos com ela incompatíveis.

Estamos à beira da entrada em vigor de uma nova diretriz legislativa que, creio, prima mais pela insegurança, que pela segurança jurídica. Enorme discussão deverá ocorrer na fixação, pelos tribunais, de novos conceitos, que decorram dos preceitos impostos sem o cuidado anterior da discussão amadurecida dessa compatibilização, confrontando princípios basilares e vitais  de proteção do Direito do Trabalho.

Nada menos que 17 ministros do TST, autoridades com décadas de experiência diária, especialistas na matéria a ser tratada no parlamento, manifestaram sua preocupação aos legisladores da ocasião, a respeito da necessidade de tal compatibilização da norma trabalhista à Constituição Federal, ou mesmo à própria legislação infraconstitucional, evitando o choque lógico-interpretativo, enviando ao presidente do Senado Federal, em 18/05/2017, documento de considerações jurídicas a respeito das inconsistências do projeto em trâmite. 

Destacaram, com o cuidado que o tema merecia, três grandes eixos da discussão. O primeiro deles referente à ampla terceirização de serviços produzindo significativa redução do patamar civilizatório mínimo, fixado pela ordem jurídica trabalhista vigorante no Brasil, inclusive eliminando a isonomia obrigatória entre o trabalhador terceirizado e o empregado da empresa tomadora de serviços, tornando a isonomia mera faculdade empresarial. O segundo , onde destacaram a eliminação de direitos que recaíam sobre cerca de 25 (vinte e cinco) direitos trabalhistas, alguns de caráter múltiplo, explicitando-os. O terceiro eixo, onde alinharam a possibilidade de eliminação de importantes garantias trabalhistas dos empregados brasileiros, além da criação de institutos e situações de periclitação de regras e garantias de segurança desses trabalhadores , enumerando nada menos que 23 dessas regras de desproteção ou periclitação de diferentes dimensões e facetas. Não as detalharei para não tornar-me cansativo.

Nenhum ouvido, nenhuma consideração, nenhuma importância foi dada às ponderações daqueles que serão os intérpretes maiores desse texto legislativo, aprovado na íntegra, tal como criticado fora.

Resta ao Poder Judiciário Trabalhista , é certo, aplicar a lei que entrará em vigor em 11 de novembro. Lei que mesmo antes de entrar em vigor, já se encontra com pelo menos 12 inconstitucionalidades apontadas pelo Ministério Público do Trabalho, inclusive com ADIN requerida perante o STF pela Procuradoria Geral da República, questionando a violação do acesso à justiça por ela perpetrada. Lei que desconsiderou Convenções Internacionais  firmadas com a OIT -  135, 98,151,154.

Como disse a Ministra do TST Delaíde Arantes, " Fizemos um juramento de julgar e vamos aplicar a lei ordinária que aprovou a reforma trabalhista, mas não vamos aplicá-la isoladamente. É uma lei trabalhista que se insere à luz da proteção constitucional e à luz da legislação internacional".

Nessa linha, convém entender que aquilo que viole princípios constitucionais ou regras internacionais a que o Brasil se obrigou a cumprir e que têm caráter supra legal, está fadado a passar por um exame de constitucionalidade, ou de convencionalidade.

Além do que, princípio é célula mater, é origem de tudo. Nada que dele derive, por razão de incoercível lógica, pode contrariá-lo. Todo o direito do trabalho tem origem em um princípio fundamental, que é a proteção de quem trabalha. Nada que ofenda a essa proteção pode subsistir. O equilíbrio de forças entre o capital e o trabalho, buscado na sua formulação, tem como eixo primeiro a proteção. Aquilo que não proteja o trabalho e, consequentemente, o trabalhador, não pode ser considerado como matéria de conteúdo trabalhista. A nossa CLT encerra em seu artigo 9º uma potente vacina imunizatória contra qualquer ameaça à violação desse princípio. Cuida para que nada que o contrarie tenha valor, impondo-lhe a nulidade.

 Assim, se existentes nas novas disposições , desproteções aos direitos anteriormente garantidos, elas deverão ser consideradas na exegese que se fará, tendo em conta o pressuposto maior da sua própria validade.

Está claro na Lei 13.467/17, a negação prima facie a essa proteção, o que, por si só, a meu ver, já compromete largamente a sua aplicabilidade. Expressa um desejo de proteção maior ao capital que ao trabalhador - a força motriz da produção, que deverá ser considerado pelo aplicador que lida diariamente com essa relação social, que envolve assédio, doença e descumprimento de direitos elementares. 

Não foi à toa que essa proteção ao trabalho  ganhou amparo constitucional no art. 7º e seus incisos da CF, nem menos significativa a sua real imbricação no princípio, também constitucional, da dignidade da pessoa humana.

Vale aqui a observação de Valdete Souto Severo (Elementos para o Uso Transgressor do Direito do Trabalho, LTR,pág.101), quando ressalta:

"Nesse aspecto, a força atuante da noção de dignidade humana repousa substancialmente na noção de proibição de retrocesso social, já admitida também como um direito, e na mudança que ajuda a promover, na própria função do Estado, que passa a assumir a função de garantidor dos direitos sociais.

Essa garantia da preservação da dignidade por meio de direitos sociais mínimos é o que legitima o reconhecimento de sua fundamentabilidade. Os direitos sociais estão no fundamento do Estado, porque se reconhece que sem efetiva possibilidade de fruir condições adequadas de moradia, saúde, educação ou trabalho, não há como sustentar um patamar mínimo civilizatório.

No âmbito do Direito Brasileiro, o reconhecimento da fundamentabilidade dos direitos sociais, apesar da discussão doutrinária, aparece claramente, seja em face da literalidade do texto constitucional - Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais - , seja em razão da opção por manter um estado capitalista de produção que, entretanto, promova uma sociedade fraterna e solidária.

É evidente que a retórica do discurso constitucional não pode ser subestimada. Basta percebermos que no mesmo texto constitucional, tratamos da função social da propriedade privada e da necessidade de realizar um percurso interno de legitimação para que normas internacionais sobre direitos humanos sejam observadas; garantimos - ao menos no âmbito do discurso - a constante melhoria da condição social dos trabalhadores, mas também, permitimos que a negociação coletiva seja utilizada para mitigar ou retirar direitos trabalhistas irrenunciáveis.

A Constituição de 1988 é o resultado de uma correlação política de forças que encontrava o Brasil num estágio ainda incipiente de redemocratização e que reproduz um discurso de perpetuidade do sistema capitalista de produção, que é incompatível com qualquer movimento real no sentido da instauração da solidariedade como parâmetro de conduta social.

Ainda assim, é importante reforçar o discurso constitucional que submete, inclusive, o exercício da livre iniciativa a valores sociais, já no art. 1º da Constituição , no qual também está expressa, como fundamento da República, a dignidade humana. A opção política está, portanto, comprometida, ao menos em parte ou em suas linhas mestras, com uma racionalidade tendente a superar o individualisto moderno.

A solidariedade, que está pressuposta no reconhecimento da dignidade humana e estabelecida como valor fundamental do Brasil, quando examinada para além da perspectiva individual, pode se tornar caminho para a construção de elementos que permitam superar a forma capital. A preservação da dignidade abarca a possibilidade de inserção social, a capacidade de falar e de ser ouvido, de intervir nas decisões políticas, de viver em um ambiente saudável, de morar em um local decente, de comer adequadamente, de conviver. Essas possibilidades, se efetivadas, necessariamente determinam a superação da forma de convívio social atualmente existente, que como já se evidenciou aqui, pressupõe exclusão e miséria."

 A solidariedade, portanto, atrelada pari passu à liberdade individual constitui a nova racionalidade do sistema, amparando a prevalência dos valores sociais sobre os individuais, atuando como norte interpretativo.

Carlos Maximiliano, mestre insuperável, nos ensina que " A Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar": descobre e fixa os princípios que regem a interpretação. " A Aplicação do Direito consiste no enquadrar um caso concreto na norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida reaL, procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado.Por outras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano".

O eminente José Martins Catharino, nos lembra que interpretar consiste na árdua busca do sentido e alcance das normas jurídicas." A lei não é um edifício com portas cerradas, e sim um amplo e permanente convite à investigação profunda. A descoberta da mens legis exige percorramos uma longa estrada de volta, infestada de perigos subjetivos e ideológicos". Mais ainda a mens legislatoris."  

É ele ainda quem nos adverte sobre duas regras básicas de interpretação da norma traballhista: "1ª - Restrinja-se o desfavorável e amplie-se o favorável. Ou, segundo os brocardos conhecidos: odiosa restringenda, favorabilia amplianda; benigna amplianda, odiosa restringenda. É regra de interpretação semelhante à penal, em contrário senso: as disposições cominadoras de pena interpretam-se estritamente.  2ª -  Na dúvida, em favor do trabalhador (in dubio pro laboratore). É regra de aplicação, assim formulada e comportando graus..."

No que diz respeito à preponderância das normas coletivas sobre a legislação estatal, mais comumente conhecido como a prevalência do negociado sobre o legislado, o tema submete-se a tudo quanto dito anteriormente.

Três artigos da nova reforma terão basicamente a minha atenção: os arts. 444 parágrafo único , 622-A e 622-B da CLT.

Antes de me debruçar sobre cada um, não posso deixar de registrar que inúmeras legislações contemplam o instituto, possibilitando a sua aplicação. A Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 15a.Região-Campinas, produziu excelente estudo coordenado pelo Desembargador Manoel Carlos Toledo Filho, denominado Negociado Sobre o Legislado no Direito Comparado do Trabalho - Negociado Sobre Legislado En El Derecho Comparado Del Trabajo. Ali se examina como isto se dá em cinco países - Espanha, Argentina, Uruguai, Holanda e Estados Unidos. Registra-se que o debate " não é novo e surge ou ressurge, periodicamente, em tempos de crise ou instabilidade econômica ". A legislação estatal seria pouco maleável, não atendendo às carências, realidades ou necessidades pontuais do sistema econômico e do regime de produção, abrindo-se espaço para a negociação direta entre empregados e empregadores. A dificuldade está no fato de que o direito do trabalho estruturou-se, historicamente, na premissa de que as normas contratuais sempre tendem a espelhar a vontade da parte mais forte na relação, mesmo quando isso ocorre pela via sindical. Por isso a necessidade de se estabelecer limites ou salvaguardas, cuja extensão nem sempre é simples de ser identificada. Examinadas as realidades comparadas, concluiu-se: 

Na Argentina, adota-se a regra mais favorável, onde a via autônoma serve para aumentar direitos , não para restringí-los. As hipóteses de restrições são excepcionais e têm, como no Brasil, respaldo constitucional.

Na Espanha, existem duas modalidades distintas de convenções coletivas: estatutárias e extraextatutárias, de todo modo sempre atuando no sentido de melhorar as condições de trabalho, prevalecendo no direito trabalhista espanhol  as normas legais de "direito necessário relativo", justamente aquelas que só podem ser modificadas em favor do trabalhador.

No direito norte-americano, existe um regramento geral onde se destacam a Fair Labor Standards Act de 1938 e a Family  and Medical Leave Act de 1993, que não se sujeitam à relativização ou flexibilização pela via coletiva, principalmente no que se refere a níveis salariais e limites da jornada de trabalho. Nem mesmo as Leis Estaduais poderiam fazê-lo, apesar do histórico (e algo radical) federalismo inerente à República  Estadunidense.

Na Holanda, mesmo havendo consenso pelos atores sociais no tocante à negociação coletiva, servindo de inspiração ao próprio legislador ordinário, a legislação heterônoma contém um "núcleo duro" virtualmente infenso a uma eventual negociação in pejus.

No Uruguai, a regra da norma mais favorável detém indiscutível prestígio, conquanto a partir dos anos 90, mesmo sob forte pressão contrária, doutrinária e jurisprudencial, se tenham celebrado convenções coletivas menos favoráveis que as legais.

Registra, por fim, o coordenador da obra que:

 "Do conjunto ora estudado, uma conclusão preliminar se pode extrair: nenhum sistema admite uma flexibilidade completa. Sempre existem patamares mínimos a respeitar, inderrogáveis pela vontade das partes, ainda quando se venha esta expressar através da via coletiva, ou seja, por ajustes sindicais, cuja legitimidade não se nega ou desconhece, mas cuja extensão não se admite seja absoluta."



O art. 444 da CLT estabelece que "As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha as disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhe sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes". A nova lei acrescenta-lhe um parágrafo único, para dizer que o empregado portador de diploma superior que  ganhe salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios da Previdência, hoje equivalente a R$11.062,62, pode negociar individualmente, e com preponderância sobre os instrumentos coletivos, toda a matéria flexibilizada no artigo 611-A, por ela criada e que está assim descrita em numerus clausus:

Art. 611-A - A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre:

I - pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais;

II - banco de horas anual;

III - intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas;

IV - adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei n. 13.189, de 19 de novembro de 2015;

V - plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança;

VI  - regulamento empresarial;

VII - representante dos trabalhadores no local de trabalho;

VIII - teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente;

IX - remuneração por produtividade, incluídas as gorgetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual;

X - modalidade de registro de jornada de trabalho;

XI - troca do dia de feriado;

XII - enquadramento do grau de insalubridade;

XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho;

XIV - prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programa de incentivo;

XV - participação nos lucros ou resultados da empresa.



Sem adentrar na discussão meritória da hipersuficência desse empregado a que se refere o art. 444 parágrafo único, mas também sem entender que auto-suficiência teria alguém que tenha um diploma e receba um valor equivalente a pouco mais de dez salários mínimos, num país de tantas desigualdades sociais, que colocam na mesma bacia das almas o miserável e o remediado, não podemos esquecer que a negociação contratual lesiva ao empregado, mesmo com a sua concordância, é vedada no art. 468 da CLT. Disto resulta que embora se tenha pretendido colocar a vontade individual desse  empregado de nível superior acima da lei e das convenções coletivas, barreiras constitucionais se erguem ao caráter absoluto disso. 

O art. 8º VI da CF exige a participação obrigatória do sindicato profissional na elaboração dos contratos que importem na prevalência do negociado sobre o legislado.

As negociações coletivas são firmadas sempre tomando por base a proteção da relação trabalhista, visando a obtenção de alguma vantagem, de alguma troca compensatória conveniente às partes naquele momento, de modo a que haja um equilíbrio negocial. Dos 15 ítens referidos no art. 611-A, aqueles que encerram matéria contida no art. 7º, VI,XII e XIV (respectivamente redução temporária de salário e jornada, jornada de trabalho e turno ininterrupto de revezamento), nem mesmo o legislador ordinário pode dispor. Que se dirá do contrato individual do profissional de nível superior que tenha tal matéria por objeto. Será nulo de pleno direito por desobediência ao comando constitucional se firmado reduzindo direitos . Todos os demais ítens, acaso negociados individualmente, se submetem à verificação da existência ou não de vícios de consentimento, devendo sempre ocorrer a anulação em caso de dúvida, em favor do empregado.

Em excelente trabalho de síntese, o Desembargador Francisco Meton Marques de Lima, do TRT da 22ª Região, Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG e o Especialista em Direito do Trabalho e Auditor Fiscal do Trabalho Francisco Péricles Rodrigues  Marques de Lima, na obra Reforma Trabalhista - Entenda Ponto por Ponto, examinam e alertam sobre todos os ítens relativos ao tema.

Quanto ao art. 611-A, especificamente no inciso II, a inovação se situa na possibilidade da compensação da jornada extra do banco de horas, através de acordo individual, levando em conta a impossibilidade do acúmulo ultrapassar o período de seis meses, tolerado o ajuste por qualquer forma de compensação, sem que ultrapasse as dez horas diárias e a mesma ocorra no mesmo mês.

O inciso III retira a necessidade de autorização do Ministro do Trabalho para redução do intervalo de uma hora para refeição, quando atendidos os requisitos traçados no §3º do art. 71 da CLT, permitindo que seja fixado, por negociação coletiva, em 30 minutos para uma jornada superior a seis horas. 

O inciso IV cuida da negociação coletiva para redução de jornada e de salários quando se tratar de preservar empregos mediante ameaça de demissão coletiva em razão de dificuldades econômicas do empregador, consequentes da retração do mercado. Sua motivação é o estabelecido na Lei 13.189/2015 que institui o Programa de Proteção ao Emprego. Permite-se pelo acordo a redução das jornadas e salários em até 30% para todos os empregados, com subsidio de até 50% da perda com recursos do FAT, desde que não exceda 65% do valor máximo da parcela do seguro desemprego, respeitado sempre o mínimo legal e a temporariedade da situação.

No inciso V afirma-se que a negociação coletiva terá prevalência sobre a lei quando tratar de planos de cargos, salários e funções e regulamento empresarial.  Como bem apontado pelo desembargador Francisco Meton, caminha-se aí na frustração de regra cristalizada na Súmula 51 do TST, pois a empresa utilizando-se do seu direito potestativo de mexer no seu PCS e no regulamento, só pactuará sobre os mesmos se tiver possibilidade de frustrar o quanto ali contido e que impede que os direitos obtidos anteriormente pelos trabalhadores sejam atingidos pela revogação ou nova alteração, ou que havendo coexistência de dois regulamentos, a opção por um deles implica na renúncia às regras do outro. Portanto, essa possibilidade de alteração, se houver, será em prejuízo do empregado.  Caso ocorra, só apanhará os contratos a partir dali, a menos que outra compensação mais vantajosa seja oferecida em relação à situação anterior.

Com relação ao inciso VI, a matéria quase que se esgota nos arts. 510-A,510-B,510-C e 510-D, valendo registrar que as novas regras aumentam o número de representantes dos trabalhadores a integrarem a Comissão de empregados destinada a promover o entendimento direto com os trabalhadores, estabelecendo um número de três membros para cada empresa com 200 até 3.000 empregados, cinco de três a 5.000 e sete de 5.000 em diante. Observa-se aqui a compatibilização com o disposto na Convenção 138 da OIT. As atribuições de tais comissões, eleição , duração de mandato e garantia contra a despedida arbitrária desde o registro da candidatura e até um ano após o final do mandato estão previstas, assim como a possibilidade de que a mesma possa funcionar com número inferior ao previsto, se não houver candidatos suficientes ou de nova eleição no prazo de um ano , após lavratura de ata nesse sentido, se não houver registro de candidatura. Não se confundem também tais representantes com os dirigentes eleitos para os cargos sindicais, a quem incumbem a discussão e formalização dos instrumentos coletivos. Mesmo assim, a possibilidade de enfraquecimento dos sindicatos é real, com tais comissões assumindo papéis que só a eles competiam. O embate, penso, será inevitável.

O inciso VII trata de teletrabalho, regime de sobreaviso e trabalho intermitente. As matérias se contêm nos arts. 75-A a 75-E e 452-A da CLT, só que aqui sob a perspectiva da possibilidade da sua negociação coletiva.

Não discutirei tais ítens nas suas especificidades, porque o paradigma seria a negociação coletiva possível de prevalecer sobre o que se encontra ali traçado, porém, no que diz respeito ao contrato intermitente, a verdade é que além de se ter criado um monstro de sete cabeças destinado a precarizar em definitivo a relação de emprego, se criou, também, a possibilidade de interferência coletiva sindical nessa forma de contratação.  

Dos incisos VIII ao XV merece destaque mais significativo o contido nos incisos XI e XII quando tratam da possibilidade de negociação para enquadramento de grau de insalubridade e prorrogação de jornada em ambiente insalubre pelas partes, matérias absolutamente inegociáveis por encerrarem  questões de saúde, tratadas em patamar constitucional. Não pode haver transigência com a saúde pública. Os níveis de insalubridade do ambiente de trabalho escapam à vontade negocial das partes. As Normas Regulamentadoras de Saúde, Segurança e Higiene do Trabalho obedecem a imperativos constitucionais e comandos internacionais a que o país se obrigou.

Já as questões hermenêuticas relativas ao exame do negociado sobre o legislado, estão contidas nos §§ 1º a 5º do referido art. 611-A.

Fixa-se ali que:

"§1º- No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto no §º 3º do art. 8º desta Consolidação. 

§2º - A inexistência de expressa indicação de contrapartidas recíprocas em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho não ensejará a sua nulidade por não caracterizar um vício do negócio jurídico.

§3º - Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra a dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo.

§4º - Na hipótese de procedência de ação anulatória de cláusula de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, quando houver a cláusula compensatória, esta deverá ser igualmente anulada, sem repetição do indébito.

§5º - Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou coletiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos.

Está claro na redação do §1º art. 8º da CLT, que o direito comum foi mantido como fonte subsidiária do direito do trabalho, embora sem os limites contidos na redação anterior. Ocorre que não existe texto de lei que não comporte interpretação conforme ao sistema em que ele se insere. Toda fonte é usada subsidiariamente quando não há, no regramento principal, solução para o conflito a ser resolvido. A supressão da expressão "naquilo que não for incompatível com os princípios fundamentais deste", a meu ver, sequer alteraria o conteúdo dogmático da norma. Explicitava-se o que estava visceralmente implícito. 

Todavia, a verdadeira intenção que se pode depreender da decisão de retirá-la, observa-se tanto no §2º quanto no §3º do referido artigo, ao proclamarem a limitação de atuação dos Tribunais na elaboração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência, restringindo-lhes a atuação normativa e no exame das convenções e acordos coletivos de trabalho, adstringindo o julgador ao princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva, impondo-lhe observar, apenas, as formalidades essenciais do negócio jurídico, à luz do art. 104 do CC.

Como bem destacou em recente pronunciamento o Dr. Guilherme Feliciano, presidente da ANAMATRA, "Na mesma linha, é inadmissível supor que o “princípio da intervenção mínima”, inserido no art. 8º, §3º, da CLT, possa significar uma obsequiosa blindagem para os acordos e convenções coletivas de trabalho, quanto a qualquer questão de “fundo”. Fere a Constituição da República qualquer interpretação daquele texto que termine por extrair, de seus termos, uma norma de absoluta imunidade jurisdicional dos ACT/CCT quanto a seus conteúdos, precisamente porque a ordem constitucional brasileira não transige com negócios jurídicos imunes à jurisdição. Nos termos do art. 5º, XXXV, CF, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (inclusive quando ela dimanar de negócio jurídico). Eis, então, as razões pelas quais se há de interpretar o art. 8º, §3º, da CLT no sentido de que todas as questões de constitucionalidade, convencionalidade e legalidade podem ser suscitadas, no âmbito da licitude e da possibilidade jurídica do objeto do negócio jurídico, como dispõe o art. 104, II, do CC, referido pelo novo preceito celetário."

O art. 611-B enumera em 30 incisos aquilo que entende impossível de negociação coletiva, que na realidade correspondem aos direitos mínimos estabelecidos no art. 7º da CF. Penso que também aqui se cria uma cláusula de barreira , porquanto se proíbe que se conceda ao trabalhador qualquer coisa a mais do que o mínimo legal que já lhe está garantido.

É certo que cada cabeça traz seu mundo e que o mundo dos julgadores não pensa de modo uniforme. Muitos verão tudo o que por mim foi dito, por ângulos completamente diferentes. E farão enorme esforço intelectivo, creio eu, para dizê-lo de outra forma. Mas uma coisa é certa: sem liberdade para fazê-lo, não o farão. E o grande capital interessado na reforma já começa a dar sinais de que não o deixarão, ameaçando a todos com o fechamento da Justiça do Trabalho.

Tal represália significa o maior de todos os desrespeitos que possam ser cometidos num estado democrático de direito: proibir os seus juízes de pensar e agir. A mordaça imposta a um magistrado, é a mordaça imposta a todo o povo de uma nação. É calar a sua voz à força. É tolher a expressão do pensamento vivo. É subjuga-lo ao pelourinho, acorrentando seus valores, tradições e sua própria cultura. 

A Justiça do Trabalho Brasileira é, reconhecidamente, a mais ágil das justiças. Hoje, quiçá, a única no mundo completamente informatizada, de norte a sul do país. Aquela que dá à sociedade a resposta mais rápida, sem mazelas ou sequelas ao jurisdicionado. Por isso, a que mais incomoda ao capital desonesto; aquele capital que não cumpre as suas obrigações, e que não quer se submeter ao avanço das relações sociais. Aquele que não admite a redução do lucro, nem uma mais justa distribuição da renda nacional. Aquele que concentra na mão de poucos, a vida de milhões de brasileiros. É esse capital que, pela boca dos parlamentares que o representam, quer, em represália, numa grande articulação nacional, fechar a Justiça do Trabalho.

Uma ignomínia!

Por isso, finalizando, quero dizer que, na verdade, não gostaria de ter falado de nada disso do que me coube falar. 

Num congresso como este, onde a chama maior da defesa das liberdades democráticas está concentrada, e que se personifica na atividade do advogado, queria mesmo era dizer da enorme tristeza que passou a habitar o coração do povo brasileiro; falar da noite que se fez em pleno dia; da dor de ver ruir sonhos libertários do preconceito e da maldade; do estancar de projetos belíssimos que nos faziam unidos, sem ódios ou ressentimentos dos nossos semelhantes; da troca da cidadania pela escravidão; da entrega da alma brasileira à falsa moralidade, e do corpo, à punição; queria falar do desespero provocado pelas indignidades cometidas que começam a ceifar vidas; do irmão que não consegue mais falar com o próprio irmão; da insegurança e do medo que volta a atormentar a nação; do desperdício do esforço civilizatório acumulado e do retrocesso científico; da transformação do real em virtual, da educação, em meta sem porvir; da destruição da política como única forma de diálogo dos povos; da criminalização indiscriminada, voraz, perversa, implantando o sadismo na psiquê do comportamento social; falar da desesperança e do cansaço que já começa a dar sinais com tanta seletividade; da despreocupação com a dor alheia; da ausência de compaixão pelo próprio semelhante; falar das violações às garantias, da volta à barbárie, do descaso, do achincalhe, da banalização ao mais sagrado direito humano à confissão privada do seu pecado apenas e tão somente ao seu advogado; das escutas ilegais, das delações forçadas; falar do sucumbir a essa interferência, como coisa menor, até por quem não tinha o direito de fazê-lo; dizer da enorme cratera aberta no seio da sociedade com o desrespeito à presunção de inocência, com a prisão ao sabor da autoridade, com a tortura como meio lícito de obtenção de prova; dizer da deterioração dos valores sociais, morais, intelectuais; do preconceito espúrio, da homofobia, da intolerância religiosa, da censura à arte; da mistura no mesmo saco, de farinhas que não se misturam; da indignação diuturna com a falsa informação, com a verdade deturpada e criada com intenção dirigida; dizer do silêncio, temeroso, ou covarde, compactuando com tudo isso. Tudo difícil. Tudo muito difícil. 

Mas reafirmo que pode ser muito difícil, mas não impossível. A razão e o nosso coração genuinamente brasileiros não sucumbirão. Aqui estamos todos. Reunidos. Resistindo. Lutando até o fim. O momento presente jamais será passado, pois como disse meu amigo e poeta José Carlos Capinan, “o passado não passa, enquanto não chegar a vitória”.

Carlos Drummond de Andrade, do alto da sua autoridade cultural, nos diz que “A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional”.

A nossa diversidade é o que mais nos irmana e é também ele quem nos ensina “que não importa a distância que nos separa, se há um céu que nos une”.

Minha pátria é minha língua. Meu Deus, a verdadeira Justiça na minha Pátria. Levantemo-nos. Unamos nossas vozes. É chegada a hora de todos nós, trabalhadores brasileiros, celebrarmos um grande acordo nacional. Uma grande Convenção Coletiva, com força suficiente de fazer prevalecer, por ser mais benéfico para todos, “o negociado, sobre o que foi legislado”.

Muito obrigado.



Salvador, 13/10/2017

Renato Mário Borges Simões

Desembargador Federal da 5ª Região.
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